Não sei exatamente quando perdemos o contato com nossa
identidade infantil, a primitiva, a primeira, aquela que deveria governar
nossos passos e conduzir nossas ações e opções; que deveria nos tornar mais
seletivos e responsáveis no critério utilizado diante das nossas escolhas mais
íntimas e que nos possibilitaria conquistar nossos ideais.
Em qual momento da vida rompe-se o lacre que sela a lealdade
que juramos diante de nosso mentor, no momento da criação? Quando é que
deixamos escapar esse pedaço de nós mesmos, “oh! metade arrancada”, por entre
os dedos.
Quando é que falhamos e desviamo-nos do nosso destino?
Ela estava lá, frente a ela mesma, de saia plissada com
suspensório, blusinha de gola redonda, bordada com florzinhas, sapatos de
verniz pretos e meia rendada. Cabelos cacheados, curtos, caídos sobre a testa e
olhar inseguro, as mãos entreabertas, furinhos na base dos dedos, (mais
infantis ainda do que são normalmente as mãos nessa idade), olhando para si, na
foto estanque, como que a se perguntar “e agora, para onde ir”?
E de salto alto, ela mesma, em frente à menina da foto, de
jeans desbotado e camiseta branca, cabelos longos e louros, propositadamente
louros para esconder os fios brancos, parada, fita a si mesma nos olhos, sem
conseguir responder qual será o próximo passo.
Incerteza - o frisson de se estar vivo nunca permite que se
viva de maneira morna e previsível.
Mas, então será que é isso? Pode ser isso? Será que aquele
olharzinho, aos quatro anos, era ao contrário, desafiador?
Será que ela estava a se perguntar, desde aquele tempo, o
quanto aguentaria deixar sedimentar dentro de si, até o próximo passo?
O quanto poderia abafar dentro do seu EU a fantástica
capacidade de ir além do pré-estabelecido, do destino, do instituído, do
socialmente correto?
Ela aceitou o desafio. Aqui está... Como folha em pleno
outono, mais uma vez desnuda, ao vento, espargindo aos quatro cantos, as
verdades que descobriu - as suas.
Espargida, multiplica-se cada vez que se fragmenta.
Paradoxal.
Verdade, porém, absoluta.
Assim acontece verdadeiramente - ao nos distanciarmos, nos
aproximamos. Ao nos fragmentarmos, multiplicamo-nos. Ao doarmos, recebemos
incomensuravelmente, mais e mais.
Assim é, pois, eu e você, você e eu, num vai e vem de onda
do mar, que leva areia, traz maresia, mistura, embola e acalma, para depois recomeçar
tudo outra vez.
Assim somos nós, eu você, por todo o sempre a nos misturar e
separar, distanciar e aproximar, desafiar e aceitar, assim somos nós enfim, até
o próximo passo.
Mais um degrau, mais uma etapa, mais um desafio, mais um
fragmento, até encher o copo d’água e transbordar, beber mais um pouco para não
deixar derramar, até a próxima gota, até o próximo instante do transbordamento,
para mais um gole, o final, afinal.
Uma rotina enlouquecedora e estimulante, já que não se sabe
de onde vem a próxima gota, qual distância percorrerá e quanto tempo levará
para chegar...
Alguns goles, muitas gotas, vários degraus, diversas
situações, muita incerteza, mais certeza, maresia, mar, sol, sombra, água
salgada e doce, gaivotas, vaga-lumes, borboletas, tudo isso e muito mais,
fragmentos da vida, o próximo passo.
Nele estão contidas todas as emoções vividas, escritas e
descritas, o inesperado, a surpresa, o ineditismo com que somos agraciados pela
vida, a cada amanhecer.
Então aqui estamos nós duas, eu e você, não duas, apenas uma.
E seja, portanto, o quê e como Deus quiser!


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